Xenotransplante: Perspectivas e Dilemas na Ciência Médica

Xenotransplante: Perspectivas e Dilemas na Ciência Médica

Introdução:

Nos últimos anos a ciência medicinal tem buscado soluções para a escassez de órgãos, e o xenotransplante surge como uma possibilidade. Enquanto a demanda por transplantes de órgãos continua a superar drasticamente a oferta, a perspectiva de utilizar órgãos de animais para suprir essa lacuna ganha cada vez mais destaque. Os xenotransplantes representam uma alternativa viável, oferecendo uma fonte potencialmente ilimitada de órgãos doadores. Na parte central dessa inovação está a promissora técnica de edição genética CRISPR-Cas9, que desempenha um papel crucial ao abrir caminho para órgãos mais compatíveis e seguros.

Sobre Xenotransplante:

O xenotransplante é uma técnica médica que envolve o transplante de órgãos, tecidos ou células de uma espécie para outra. Em termos mais simples, é quando um órgão de um animal é transplantado para um ser humano. A prática de utilizar órgãos de animais em seres humanos não é uma novidade, remontando desde implantes de testículos de chimpanzés até a substituição de rins e corações retirados de primatas.

Entretanto, tais procedimentos muitas vezes resultaram em óbito para os pacientes em um curto período de tempo. Isso ocorria devido à rejeição dos órgãos de animais pelo sistema imunológico humano, que os identificava como ameaças e os atacava. Atualmente, a atenção da comunidade médica está voltada para os porcos, uma vez que seus órgãos apresentam um tamanho adequado e a humanidade
acumula séculos de experiência na criação desses animais.

Pesquisas e Avanços:

Já é comum se utilizar tecidos suínos em próteses cardíacas e na composição de fígados bioartificiais. Mas o uso de células e órgãos de porcos e de outros animais ainda tem grande limitação. No intuito de melhorar esse quadro, pesquisadores vêm lançando mão de técnicas sofisticadas de terapia genética. Há grupos testando a produção de porcos com órgãos mais compatíveis com o organismo humano, o que diminuiria a chance de rejeição em casos de xenotransplante. Nesses experimentos, partes genéticas desses animais que provocam a rejeição hiperaguda são substituídas por genes humanos.

Com o avanço da genética e a possibilidade de se reprogramar células maduras em células-tronco embrionárias através da técnica CRISPR-Cas9, o leque de possibilidades aumenta. Nessa linha, pesquisadores estão testando o xenotransplante de diferentes tipos celulares, entre eles as células mesenquimais (importantes na cicatrização), células-tronco de ilhotas pancreáticas, do sangue e do fígado de porco.

Nos últimos dois anos, ocorreram alguns transplantes em humanos utilizando órgãos de porcos modificados geneticamente. Inicialmente, os transplantes renais foram realizados como procedimentos experimentais, envolvendo indivíduos em estado de morte cerebral, a fim de investigar a viabilidade do procedimento e possíveis complicações. Os órgãos transplantados não foram rejeitados e demonstraram atividade de filtragem urinária, indicando a viabilidade do método. Em março de 2024, a equipe liderada pelo médico brasileiro Leonardo Riella realizou o primeiro xenotransplante renal clínico em um ser humano vivo, sem morte cerebral, em Boston, nos Estados Unidos. O receptor era um paciente com insuficiência renal crônica, previamente submetido a um transplante de rim humano que foi rejeitado, levando-o a sete anos de tratamento por hemodiálise. O paciente conseguiu viver sem hemodiálise por dois meses, mantendo a função renal normal, porém, posteriormente, faleceu em casa, possivelmente devido a complicações cardíacas.

Xenotransplantes no Brasil:

O Brasil está avançando na área de xenotransplante. Em abril de 2024, o grupo liderado por Zatz inaugurou o primeiro biotério com nível de biossegurança 2 (NB2) dedicado à criação de suínos genéticamente modificados, cujos órgãos possam ser transplantados em humanos. A ideia de estabelecer um laboratório especializado para o xenotransplante surgiu há sete anos, impulsionada pelo
professor Raia, que dedicou sua carreira aos transplantes de órgãos.

Em 1985, ele realizou o primeiro transplante de fígado com doador falecido da América Latina e, três anos depois, o primeiro com doador vivo documentado. Após uma viagem ao Alabama, nos Estados Unidos, para avaliar projetos experimentais de xenotransplante, ele voltou convencido de que essa era a linha de pesquisa mais promissora para a obtenção de órgãos adicionais.

Riscos e Ética:

O xenotransplante, apesar de promissor, enfrenta desafios significativos. Uma das principais preocupações é a rejeição dos órgãos transplantados pelo sistema imunológico do receptor, complicando-se quando órgãos de animais são utilizados. O uso de imunossupressores, necessários para prevenir a rejeição, acarreta riscos de complicações adicionais, enquanto a escassez de animais de laboratório específicos dificulta os avanços na pesquisa. A possível transmissão de infecções à população humana em geral, incluindo o potencial de infecção entre espécies por retrovírus, representa uma preocupação para a saúde pública e destaca a necessidade de cautela e pesquisa contínua.

Além disso, questões éticas e religiosas surgem em torno do tratamento dos animais doadores e do conflito com crenças e tradições religiosas. Utilizar animais para transplante pode ser considerado uma exploração injusta e entrar em conflito com restrições alimentares e práticas rituais de certas religiões. Há também
preocupações sobre a manipulação genética dos animais doadores e a transferência de material genético entre espécies, levantando debates éticos e religiosos sobre a interferência na criação divina.

Conclusão:

O xenotransplante representa uma área de pesquisa promissora para enfrentar a escassez de órgãos e melhorar os resultados dos transplantes. Apesar dos avanços encorajadores e dos esforços contínuos para superar os desafios técnicos e éticos associados a essa prática, ainda há muitas questões a serem abordadas.

A necessidade de equilibrar os potenciais benefícios dos xenotransplantes com os riscos de rejeição, complicações médicas e preocupações éticas e religiosas continua a ser uma prioridade. À medida que a pesquisa avança e novas descobertas são feitas, é essencial abordar essas questões de maneira abrangente e multidisciplinar, com uma ênfase especial na segurança dos pacientes, no respeito
aos direitos dos animais e no diálogo sensível com diversas perspectivas religiosas e culturais. Somente assim poderemos alcançar avanços significativos e responsáveis na busca por soluções para as necessidades de transplante de órgãos da sociedade.

Wylker Alves