Segurança energética e mudança climática

Por Ronaldo Bicalho* – Segurança energética e mudança climática são os dois grandes eixos em torno dos quais se estruturam atualmente as políticas energéticas no mundo.

Com isto, garantir o suprimento de energia e reduzir as emissões dos gases de efeito estufa tornaram-se grandes objetivos estratégicos dos Estados Nacionais no campo da energia, com reflexos significativos na composição desejada da matriz energética futura e na configuração das estratégias mais adequadas para alcançá-la.

Contudo, a avaliação das reais consequências da presença desses dois objetivos no cerne da política energética necessita de uma qualificação. Principalmente, no que diz respeito à maneira como os Estados Nacionais percebem, hierarquizam e introduzem em seu conjunto de políticas públicas esses objetivos; o que, ao fim e ao cabo, se traduz no volume de recursos que, de fato, esses Estados estão dispostos a mobilizar para alcançá-los.

Tomando-se a segurança energética como ponto de partida, constata-se que o termo permite interpretações diversas. Uma leitura apressada poderia confundir essa segurança com a autossuficiência energética.

Nesse sentido, aumentar a segurança energética de um país seria o mesmo que reduzir a sua dependência das importações de insumos energéticos do exterior. Uma política energética que abraçasse essa abordagem implicaria em uma oferta energética autônoma, endógena e que contemplaria prioritariamente as fontes nacionais.

De forma alternativa, pode-se perceber a segurança energética como sendo o grau de controle que se tem sobre toda a cadeia de suprimento de energia; independentemente dessa cadeia se encontrar no próprio território, ou não. Desse modo, a forte ampliação do controle sobre os países supridores de energia pode trazer dividendos maiores para a redução do risco do suprimento energético do que a internalização completa desse suprimento.

Por exemplo, a proposta de redução da dependência energética está na pauta da política energética americana há décadas. Contudo, os resultados práticos desse aparente compromisso com a ampliação das fontes nacionais na matriz energética não correspondem à relevância dada à conquista dessa independência nos diversos planos estratégicos de energia desde o governo Carter.

Esse “fracasso” aparente da política energética americana leva a crer que a segurança energética americana vai muito além do que a simples ampliação da autonomia, incorporando uma gama de controles de acesso sobre os recursos externos, que pressupõe o poder econômico, político e militar necessário ao acesso a esses recursos.

Do outro lado do Atlântico, a velha Europa se vê em dificuldades para garantir a sua segurança energética mediante o recurso à endogeinização da sua oferta de energia, face à sua relativamente modesta base de recursos naturais fósseis. A colocação da Rússia e do Norte da África como supridores de energia contribui efetivamente para reduzir essas dificuldades.

Olhando para o forte crescimento da demanda asiática é difícil acreditar que a segurança energética chinesa repousa na autarquização do seu suprimento de energia.

Nesse contexto, segurança energética não se resume ao exercício da autonomia energética. Embora o aumento da participação da produção interna na oferta de energia colabore para a redução do risco do suprimento, ele não é suficiente para fazer face à forte expansão da demanda energética esperada em alguns países para as próximas décadas.

Isto significa que a segurança energética, para alguns países, tem uma forte dimensão global e diz respeito ao acesso aos recursos energéticos globais. Nesse caso, a segurança energética se confunde com o sucesso na disputa pelo acesso a esses recursos.

O peso que essa vertente global vai adquirir em uma dada política energética dependerá de um conjunto de fatores que vai desde a base de recursos naturais até a magnitude do consumo energético, passando pelos recursos de poder disponíveis para um dado país.

Nesse sentido, segurança energética pode significar, para aqueles que detêm recursos energéticos, ampliação da produção interna; para aqueles que controlam, de alguma forma, seus fornecedores, aumento das importações; para aqueles que possuem as duas coisas, combinação produção e importação; e por aí vai.

Em suma, segurança energética pode significar muitas coisas, dependendo da percepção que se tem da sua natureza e do seu nível adequado; além dos recursos de poder disponíveis para garanti-la.

No que concerne à mudança climática, a diversidade de concepções também está presente na definição das políticas energéticas, levando a distintas ações a partir de distintas percepções sobre a gravidade dessa mudança e suas causas.

O primeiro ponto a ressaltar é a maneira como cada Estado Nacional reconhece os resultados apresentados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC/ONU). Aqui não se trata apenas de reconhecer a gravidade dos impactos gerados a partir das mudanças do clima, mas reconhecer as emissões de CO2 como a principal fonte causadora desse processo e estar disposto a implementar ações concretas para reduzi-las de forma significativa; o que, ao fim, significa reduzir de forma significativa o uso dos combustíveis fósseis.

Assim, a redução do uso dos combustíveis fósseis está diretamente relacionada ao reconhecimento dessa gravidade e dessa causalidade. Quanto maior esse reconhecimento, maior o compromisso com essa redução.

Esse compromisso pode-se dizer, de forma impressionista, que é maior no governo Obama do que foi no governo Bush, maior na Europa do que nos Estados Unidos, maior na Alemanha do que na China.

Na verdade, o grau desse compromisso é importante na medida em que ele é fundamental para sustentar o sacrifício em termo de crescimento e de bem-estar representado por uma redução mais significativa do consumo dos combustíveis fósseis.

Esse ponto é importante porque diz respeito a percepção de que não é possível manter o padrão atual de crescimento e de bem-estar diante de uma redução drástica do uso das fontes fósseis. Aqui está implícita uma hipótese de que as tecnologias hoje disponíveis para as fontes renováveis não são capazes de substituir as fontes fósseis no mesmo patamar de confiabilidade, disponibilidade e custos.

Dessa maneira, a mudança climática se relaciona com a segurança energética não só em termos do volume de demanda de energia para qual será assegurada a oferta, como também o conteúdo dessa oferta.

O atendimento pleno da demanda, sem mudança de padrão de consumo, implica na incorporação de fontes “limpas” que não se limitam às renováveis, incorporando o nuclear, o gás natural e até mesmo o carvão – desde que utilizando as chamadas clean coal technologies.

Pode-se discutir sobre o grau de limpeza dessas fontes, porém elas jogam um papel relevante no afastamento dos sacrifícios associados à redução do consumo dos combustíveis fósseis. Na ausência dessas fontes, esses sacrifícios se tornam maiores, dificultando o avanço político das propostas de enfrentamento dos problemas ligados à mudança climática.

Nesse sentido, quando Obama abandonou, no início deste ano, sua estratégia de penalização do uso dos combustíveis fósseis, substituindo-a por uma política de incentivos às energias limpas – nuclear, gás natural e carvão aí incluídos -, ele calculou que era até onde dava para ir no enfrentamento da questão ambiental com o apoio hoje existente na sociedade americana.

É nessa mesma direção que se encontram as preocupações da Agência Internacional de Energia com o acidente de Fukushima e a retirada da nuclear desse cardápio de soluções: fortalecimento dos combustíveis fósseis e aumento das emissões.

O papel do gás natural como o combustível da transição dos fósseis para os renováveis também segue o mote da compatibilização entre o enfrentamento das causas da mudança climática e uma visão de segurança energética que contempla a manutenção do padrão de consumo mediante a utilização de um combustível fóssil “melhor” do que os outros.

Essas estratégias representam uma vertente de política energética que contempla o enfrentamento da mudança climática sem a mudança do padrão consumo; no limite uma transição “indolor”.

Em contrapartida, pode-se considerar que a gravidade da mudança climática global não permite a manutenção do atual padrão de consumo, o que implica em uma relação entre segurança energética e mudança climática distinta das anteriores e marcada pela forte redução do consumo e pela mudança radical do conteúdo da matriz, privilegiando as renováveis.

Em suma, segurança energética e mudança climática, embora sejam os dois grandes pilares das políticas energéticas hoje no mundo, não têm a capacidade de definir claramente o conteúdo dessas políticas, na medida em que permitem interpretações distintas.

Para entender melhor a natureza dessas políticas, o que há de comum e de diferente entre elas, é necessário analisá-las com maior cuidado, inserindo-as no contexto mais amplo dos projetos estratégicos dos Estados Nacionais.

*Ronaldo Bicalho é pesquisador do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalha na área de mudanças estruturais e institucionais nas indústrias de energia, com foco na Energia Elétrica e Política Energética.

(Nota: artigo publicado pelo Infopetro, blog do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro GEE/UFRJ, com o título de Segurança energética e mudança climática: diferentes visões, diferentes políticas)


Fonte: Ambiente Energia