Itaipu: compromisso versus oportunismo
Aprovam a ideia: os paraguaios e quem adora fazer bondades com dinheiro alheio.
Por Claudio J. D. Sales
10/05/2010
Paraguai quer revisão do Tratado de Itaipu porque os rendimentos da usina equivalem a cerca de 20% do seu orçamento
Enquanto a atenção do país se concentra no controverso leilão do aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte, o Congresso Nacional decide o futuro financeiro de outro gigante, a usina binacional de Itaipu, construída no rio Paraná, na divisa entre Brasil e Paraguai, com risco de prejuízo bilionário para consumidores e contribuintes brasileiros.
A Representação Brasileira no Parlamento do Mercosul (Parlasul) aprovou na semana passada a proposta de alteração do Tratado de Itaipu. A matéria agora tramita como Projeto de Decreto Legislativo em regime de urgência no Congresso Nacional.
A proposta é triplicar o valor pago pela energia não utilizada pelo Paraguai e consumida pelo Brasil, valor chamado de “Remuneração por Cessão de Energia” e que representa apenas uma parcela da remuneração global ao Paraguai. O impacto da alteração é da ordem de US$ 240 milhões por ano, ou US$ 3,3 bilhões até 2023, quando está prevista a revisão das bases financeiras do Tratado de Itaipu.
Por que alterar os termos desse Tratado recebe tanto espaço no discurso político paraguaio e nos meios brasileiros que adoram fazer bondades com o dinheiro do contribuinte e do consumidor brasileiro?
Do lado paraguaio, porque é irresistível. Como hoje os rendimentos de Itaipu equivalem a cerca de 20% do orçamento paraguaio, a ação oportunista de nosso vizinho é apoiada na hipótese de que qualquer concessão do Brasil proporcionará uma fonte de receita adicional muito significativa e uma alavanca político-eleitoral para os que liderarem a ação.
Do lado brasileiro, a intenção de se posicionar como “líder regional” – tomando medidas que geram custos comunicados de forma não transparente à sociedade, sem a adoção de mecanismos democráticos para avaliação de suas consequências – parece justificar as seguidas derrotas econômicas que têm sido colecionadas pelo Brasil nas concessões feitas a vários países da América do Sul nos últimos anos, especialmente no setor elétrico.
O Tratado de Itaipu foi elaborado para assegurar os interesses e garantir a igualdade de direitos e obrigações para cada país, eliminando inclusive a assimetria econômica original entre Brasil e Paraguai. Ao contrário do que argumentam os paraguaios, não há nenhuma injustiça.
A energia gerada pela usina hidrelétrica é dividida igualmente entre os dois países. Cada parte tem o direito de adquirir a energia não utilizada pela outra para consumo próprio. As bases financeiras do Tratado, contidas no Anexo C, prevêem que o valor a ser pago pela potência contratada por ambos os países deve remunerar o custo do serviço de eletricidade.
Entender esse conceito é fundamental: a lógica econômica de Itaipu não é de “preço de mercado”. A lógica está baseada em honrar os custos do serviço, aí incluídos os custos de construção e de financiamento.
O Paraguai tem defendido a tese de que o valor pago pela energia cedida ao Brasil é baixo, referindo-se exclusivamente à parcela chamada de “Remuneração por Cessão de Energia”. Tal tese procura sustentar-se dando foco parcial a algumas partes de um arranjo complexo que teve que ser orquestrado – por brasileiros e paraguaios – para viabilizar a usina. Somente conhecendo todos os componentes é possível entender o real perfil de riscos assumidos ao longo do tempo.
Um dos componentes “esquecidos” pelos paraguaios é o fato de que, ao contratar a capacidade de geração de energia não utilizada pelo Paraguai, o Brasil assume todos os seus custos. E note-se que o valor da Cessão por Energia – citado como “baixo” pelos paraguaios e que seria triplicado – soma-se a tais custos.
Hoje, a tarifa de energia de Itaipu sai por cerca de US$ 45 por megawatt-hora para os brasileiros (ou R$ 80 por megawatt-hora ao câmbio de hoje, valor compatível com as tarifas contratadas nos recentes leilões do Complexo Madeira e Belo Monte) e pode ser considerada módica. Mas nem sempre foi assim.
A fase final de construção da Binacional ocorreu na década de 80, período em que as taxas de juros globais subiram a patamares elevadíssimos e chegou-se a cogitar o abandono da usina. O impacto sobre Itaipu foi devastador, pois 99,6% dos recursos vieram de empréstimos nacionais e internacionais integralmente assumidos pelo Brasil.
Portanto, durante os primeiros anos a energia de Itaipu foi muito cara. E o Brasil, sozinho, viabilizou a obra se comprometendo a contratar toda a potência não utilizada pelo Paraguai. Além disso, estabeleceu-se que o país que consumisse a energia ficaria responsável pelo pagamento do custo pelo serviço. E como, desde o início, o Brasil se comprometeu a contratar até 100% da capacidade disponível da usina, nosso país na prática assumiu, ao longo de décadas, cerca de 95% da potência da usina. Isso significa que foi o consumidor de energia elétrica do Brasil quem viabilizou a sustentação financeira da usina durante esse período conturbado. Agora, superada a crise, o governo paraguaio busca de forma oportunista elevar a sua parcela da receita.
O Tratado de Itaipu é um contrato de longo prazo firmado com a premissa básica de que os riscos, custos e, em decorrência, as receitas da usina seriam distribuídos de forma assimétrica ao longo do tempo. Portanto, alterar as condições do contrato no meio do percurso resulta em desbalanceamento do equilíbrio econômico-financeiro originalmente pactuado entre as partes.
O Brasil não deve nada ao Paraguai. A usina de Itaipu foi e é um excelente negócio para o nosso vizinho por várias razões. Além de atender às necessidades energéticas do país por muitas décadas, em 2023 o Paraguai será proprietário de metade da usina, livre de dívidas, tendo arcado com somente 5% de seu custo.
O Congresso brasileiro, instituição com o poder e a responsabilidade de aprovar ou não a alteração do Tratado de Itaipu, precisa entender as bases históricas e a arquitetura econômico-financeira do empreendimento.
Manter o Tratado atual é o caminho mais frutífero para construir um ambiente que sinalize seriedade entre compromissos de longo prazo firmados entre Estados.
Claudio J. D. Sales é engenheiro e presidente do Instituto Acende Brasil