A calúnia que matou as hidrelétricas
É impressionante como uma tecnologia pode ir do céu ao inferno sem escalas — e sem lógica. Esse é o caso das hidrelétricas com grandes reservatórios de água. Essa fonte de energia já despertou o orgulho nacional. E isso não se deve somente ao gigantismo dos exemplares construídos nos anos 70, período embalado por intenso ufanismo e pelo culto ao monumental (caso de Itaipu). Essas usinas também eram badaladas por produzir energia limpa, renovável, de baixo custo, com excelente nível de segurança tanto operacional como de suprimento. Elas, na verdade, foram festejadas por desintoxicar a matriz energética brasileira. E hoje? Caíram em desgraça. Mas a autópsia desses sistemas está inconclusa. A causa mortis ainda soa, no mínimo, obscura.
Contra as hidrelétricas pesam acusações lançadas por alguns grupos de ambientalistas. A lista inclui as extensas áreas alagadas, as alterações provocadas em cursos de rios, além das represas que, com a mata submersa, se transformam em fábricas de gás metano, um dos responsáveis pelo efeito estufa. Tudo isso acontece. Ninguém nega. O problema é que esses aspetos negativos sempre foram suplantados pelos positivos. Hoje, porém, o lado negro dessa fonte verde tem sido realçado como se outras tecnologias, caso da solar e da eólica, fossem donzelas ilibadas, com nível zero de emissão. Não é assim.
A eólica, por exemplo, deixa rastros. Muitos. Para começar, é limitadíssima. Precisa do vento, um motor instável e temperamental, para impulsioná-la e só tem chances de se tornar viável como fonte complementar. Outro ponto pouco abordado: a tecnologia das torres eólicas melhorou nos últimos anos, mas tem que avançar. Na prática, está no berçário. Assim, surgem dúvidas sobre a vida útil desses cataventos gigantes. Em 50 ou 100 anos, o que será dos parques que reúnem hoje centenas desses equipamentos? Eles não precisam de manutenção ou troca? Isso não tem um custo, inclusive ambiental? Ou estarão sucateados?
A ideia, aqui, observe-se, não é denegrir a imagem da eólica. Vários aspectos positivos podem ser anotados a favor dessa tecnologia, para cada ponto duvidoso exposto acima. Bordoadas semelhantes também poderiam ser disparadas contra a solar, a geotérmica ou a biomassa. Nenhuma delas é perfeita. Não existe, aliás, fonte perfeita. O que se pretende é aprofundar, ainda que por contraste, o debate sobre a condenação das hidrelétricas com reservatórios de suprimento.
Essas usinas têm sido jogadas no ostracismo sem direito de resposta. E várias questões ficaram pendentes nesse processo. Quer outro exemplo? É inegável que, como foi mencionado, as hidrelétricas com reservatório têm impacto ambiental. Mas esses problemas têm um peso imenso no momento da construção e da instalação do sistema. Esse dano deveria ser amortizado pelo longo tempo de operação das usinas, cuja produção é essencialmente limpa.
O problema, contudo, não se resume a uma questão de imagem. A derrocada das hidrelétricas afetou a política brasileira para o setor. Atualmente, as usinas com reservatório têm sido substituídas pelo modelo “a fio d’água”, como o utilizado em Belo Monte, Santo Antônio e Jirau. Elas têm áreas inundadas menores, mas, instaladas em terrenos planos da região Norte, tornam-se ineficientes.
Especialistas como o professor Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (GESEL), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acreditam que o país comete um erro estratégico grave (mais um) ao alterar o perfil das hidrelétricas. “Os críticos das grandes usinas podem ter boas intenções, mas desconhecem como funciona o sistema elétrico”, diz o pesquisador. “Os reservatórios são fundamentais para garantir o abastecimento de energia nos períodos secos do ano.” Sem as represas, as hidrelétricas não perdem a eficácia — perdem o sentido.
Para piorar a situação, na prática, elas estão sendo substituídas por termelétricas, com energia muito mais cara e suja. A aposentadoria das hidrelétricas também compromete a regulação do sistema brasileiro. É isso o que demonstra um estudo recente, produzido pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Em 2001, por exemplo, a água armazenada nas usinas era suficiente para abastecer toda a rede do país (o Sistema Integrado Nacional) por 6,27 meses. Com o aumento do consumo de energia e o falta de renovação dos reservatórios, esse prazo está desabando. Em 2012, aponta o levantamento da Firjan, era de 4,91 meses. Em 2021, terá caído para quase a metade: 3,35 meses. A pergunta certa a fazer sobre esses dados: e quem vai cobrir esse buraco? A eólica, uma solução complementar? A solar com preço elevado e tecnologia que não largou a mamadeira? O gás de xisto, cuja exploração nem engatinha no Brasil? Com base no passado recente, é fácil cravar: a termelétrica.
Fonte: Época