Ciência no combate ao crime
Atualmente uma das formas mais populares de entretenimento são as séries policiais. Nessas séries, a ciência é uma das mais fortes aliadas dos protagonistas, que usam constantemente técnicas sofisticadas, como análises de DNA e de impressão digital, para obter evidências confiáveis que os permitam solucionar o crime.
Para além da empolgação que o telespectador sente assistindo esses casos, alguns podem se perguntar o quão condizente com a realidade essas séries estão sendo. Essas técnicas são confiáveis? O quão populares elas são?
Para obter essas respostas e entender os benefícios e as limitações no uso da ciência para solucionar crimes, iremos analisar a situação de dois países: Brasil, onde o ramo da ciência forense é uma área escassa com poucos investimentos; e Estados Unidos, onde é amplamente utilizada mas frequentemente de forma errônea.
Brasil:
No Brasil, a área de investigação criminal segue como um grande desafio para o país, e necessita de mudanças urgentes. Isso é evidenciado pelo fato de que 7 em cada 10 casos de homicídios do país não são solucionados, segundo levantamento do Instituto Sou de Paz.
Outro problema é a baixa quantidade de profissionais atuando na área. A recomendação da ONU é de que haja um perito para cada 5 mil habitantes, e o levantamento mais recente sobre isso no Brasil foi em 2013, que aponta a existência de um para cada 38 mil. Assim, com um elevado fluxo de trabalho, muitas vezes esses profissionais não têm tempo suficiente para fazer a investigação de maneira adequada.
Para melhorar esse panorama, especialistas em ciências forenses defendem que a discussão de segurança pública deve deixar de ser apenas uma questão processual da área do Direito, e passar a ser também uma discussão científica, já que a ciência fornece robustez e rapidez à investigação de crimes.
Seguindo essa linha de pensamento, a cooperação entre a polícia e a academia aumentou muito nos últimos anos. A seguir, veremos algumas das iniciativas mais sucedidas surgidas dessa cooperação:
Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG)
A criação da RIBPG permitiu a peritos de todo país cruzar DNA encontrado em cenas de crime com o de criminosos que tiveram material genético coletado.
Essa rede reúne atualmente 175,5 mil amostras, e já auxiliou no esclarecimento de mais de 2.200 investigações criminais desde 2019. Além da identificação de criminosos, a rede também permite a identificação de cadáveres e ossadas de pessoas cadastradas nela. A imagem abaixa, retirada do relatório da rede, mostra o número de perfis genéticos para cada categoria de amostra:
Dentre os casos que foram elucidados graças à RIBPG, estão:
- Prisão do assassino de Rachel Genofre, menina de nove anos encontrada morta dentro de uma mala na rodoviária de Curitiba, em 2008. O caso ficou 11 anos sem solução, até que foi feita a análise de DNA que identificou o culpado
- Prisão de Célio Roberto Rodrigues, estuprador em série responsável por mais de 50 vítimas no período entre 2012 e 2015, nos estados de Amazonas, Mato Grosso, Rondônia e Goiás.
- Identificação de uma senhora desaparecida por 12 anos, após ser encontrado compatibilidade entre os perfis genéticos das filhas com o corpo, localizado na cidade de Lavrinhas (SP).
Apesar dos avanços no número de amostras da rede, ela ainda é pequena comparada a outros países, como o Estados Unidos, que possui 20 milhões de amostras, e o Reino Unido, que possui cerca de 6 milhões.
Além disso, ela também sofre resistência por partes que afirmam que a rede é inconstitucional e que a coleta de DNA fere os direitos humanos. Contudo, outros países com ampla cultura democrática e de defesa dos direitas humanos já superaram esse debate, como é a Dinamarca, onde após uma grande reforma no banco de dados do país, notou no ano seguinte uma redução de 43% na reincidência de crimes.
Outras iniciativas:
O Banco Nacional de Perfis Balísticos está em fase de implementação e permitirá o cadastramento de armas de fogo e características únicas em projéteis e estojos de munição para ajudar a identificar qual arma foi usada no crime. Espera-se que a medida tenha grande impacto no combate à criminalidade violenta, considerando que armas de fogo são utilizadas em cerca de 70% dos casos de homicídios no país.
Outra medida foi a proposta da criação de uma Secretaria Nacional de Ciências Forenses, feita pela Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), para viabilizar o maior e melhor emprego da ciência e tecnologia na solução de crimes e redução da impunidade.
Estados Unidos
Já nos Estados Unidos, o ramo das ciências forenses é um campo altamente especializado e crucial para o sistema de justiça do país. Entretanto, frequentemente são utilizadas técnicas subjetivas ou sem validez científica utilizadas como evidência forense. A seguir, entenderemos mais sobre como esse problema afeta o panorama da investigação criminal no país:
O Efeito CSI
A ciência forense tem tido um problema com técnicas e evidências inadequadas por décadas. Contudo, um fenômeno que intensificou isso foi o chamado Efeito CSI, que se refere a influência que séries como “CSI” e “Law & Order” criam sobre jurados que as assistiram, e não apenas esperam que hajam evidências forenses em todos os casos, como desconsideram a precisão e validez delas. Procuradores relatam que muitos jurados são relutantes em votar na condenação de um caso sem essas evidências.
A atenção foi chamada por esse problema com um relatório de 2009 da National Academy of Sciences (NAS), que questionava as bases cientificas da maioria das disciplinas forenses e concluiu que a maioria, por exceção da análise de DNA, não foi capaz de demonstrar consistentemente e com grande precisão a relação entre evidência e um indivíduo ou fonte específico. Desde então, surgiram mais esforços para aumentar a confiabilidade e qualidade de evidências, e muitos casos antigos foram revisados. Abaixo, veremos em mais detalhes os impactos desse estudo:
Impactos do Relatório da NAS
Técnicas menos confiáveis:
O relatório danificou especialmente as disciplinas de correspondência de padrão, onde um analista comparava alguma evidência da cena do crime com a amostra de algum suspeito. Nessas disciplinas, algumas das seções mais populares envolvem a análise de marcas de mordida e fibras de cabelo. As bases científicas dessas técnicas foram severamente questionadas, e em 2015, foi revelado que durante as décadas de 80 e 90, dos 268 casos em que o FBI utilizou comparação de microfibra de cabelo , cerca de 257(96%) se baseavam em evidências inadequadas.
Outro exemplo de técnica com grandes incertezas é a análise de padrão de sangue, que tenta utilizar amostras de sangue para entender e reconstruir a cena de crime. O relatório da NAS aponta que a opinião dos que são proficientes com essa técnica é muito mais subjetiva do que científica.
Houveram centenas de pessoas condenadas injustamente por essas técnicas. Alguns casos que se destacam são:
- Keith Harvard: serviu 33 anos na prisão por estupro e assassinato com base em evidências de mordida defeituosas. Desde que foi liberado, fez severas críticas aos especialistas forenses em odontologia.
- Santae Tribble: serviu 26 anos na prisão por assassinato com base em evidência de análise de fibras de cabelo, alegada por um especialista da FBI. Quando foi feito uma análise de DNA, descobriu-se que dos 13 fios de cabelo encontrados na cena, nenhum era dele, e um era de um cachorro.
- Joe Bryan: serviu 33 anos na prisão, acusado de matar a esposa, com base em análises de padrão de sangue. Eventualmente, foi determinado que a evidência não era confiável.
Técnicas confiáveis:
O relatório da NAS aponta que técnicas de DNA e impressão digital são mais confiáveis, mas não perfeitas. Um grande exemplo disso foi em 2004, quando o americano Brandon Mayfield, que nunca esteve na Espanha, foi acusado como um dos responsáveis pelo 11-M, que foram atentados terroristas contra o sistema de trens suburbanos em Madrid. Essa acusação foi feita baseada em três amostras de digital que correspondiam a de Mayfield. O caso foi importante para demonstrar que pessoas diferentes podem ter impressões digitais tão semelhantes que até profissionais da área teriam dificuldades em diferenciar.
É um consenso que exames de DNA são a forma mais confiável de evidência forense. Contudo, as amostras fornecidas por cenas de crime são de grande variedade, e muitas vezes possuem mais de um contribuidor.
Conclusão
Comparando a situação desses dois países, vemos que a ciência é fundamental no combate ao crime, fornecendo métodos e técnicas que permitem coletar, analisar e interpretar evidências forenses de maneira precisa e confiável. No entanto, é importante ter cautela com técnicas forenses que não possuem validade científica comprovada, para evitar erros judiciários e condenações injustas. A aplicação de técnicas confiáveis, o treinamento adequado dos peritos e o acesso a tecnologias modernas são essenciais para garantir a precisão e confiabilidade das análises e a busca pela verdade e justiça em todas as investigações criminais.
Referencias
- Por que Brasil dá pouco crédito à ciência criminal mesmo tendo altos índices de violência
- Peritos da PF propõem secretaria para usar ciência no combate ao crime
- No Rastro do Crime
- A serviço da Justiça
- Forensic Experts Fight Over the Problem of Junk Science
- Is It Forensics or Is It Junk Science?
- Forensic Science: Last Week Tonight with John Oliver (HBO)